loader
Sobre

LUIZ AUGUSTO BECK DA SILVA
Jurista – Escritor
Profere palestras, ministra cursos e aulas por todo o BRASIL.

O duplo grau de jurisdição

 

Na infindável busca da tão sonhada efetividade processual com vistas a acabar ou, ao menos, minimizar a histórica e crônica morosidade judiciária, reconhecida até mesmo por qualificada plêiade de seus membros, em particular por cúpulas diretivas de tribunais e suas corregedorias – foram promulgadas as Leis n°s. 10.352, de 26/12/2001 e 10.358, de 27/12/2001, ambas com vigência três (3) meses após a data da publicação, que alteraram dispositivos do Código de Processo Civil – CPC – referentes a recursos e ao reexame necessário, entre outros relativos ao processo de conhecimento.

Tratou-se, em realidade, de uma segunda reforma processual civil. Antes, a Lei n° 8.038, de 28/5/1990, já tratara de tal capítulo (Recursos), instituindo normas procedimentais para os processos que especificou perante o colendo STJ e o excelso STF. A criação dos institutos da tutela antecipada (Lei n° 8.952/94) e da Ação Monitória (Lei n° 9.079/95) a par do incremento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n° 9.099, de 26/9/1995), inclusive na esfera da Justiça federal (Lei n° 10.259, de 12/7/2001), além de modificações no âmbito do Agravo (Lei n°  9.139/95) visando a subida de recursos especiais e/ou extraordinários, com seguimento negado, e para
questões incidentais, entre outros regramentos, advieram com o mesmo escopo: agilização e desafogamento.

Certos normativos, desde sua introdução no ordenamento jurídico, permitem-nos, desde logo, mercê de experiência vivenciada, antever que não alcançarão os fins pretendidos pelo legislador pátrio, primeiro porque sua elaboração prescindiu da figura de juristas, dos quais não se pode abdicar na feitura das leis e, segundo, porque se constituem em paliativo e perfumaria com “solução” perfunctória, não adentrando no âmago do problema. Outros, revela-se prudente aguardar o fator temporal, a fim de que se possa melhor avaliar sua utilidade.

O duplo grau de jurisdição não é novo entre nós. O CPC de 1939 (art. 822) já previa a apelação necessária quando a sentença declarasse a nulidade do casamento, homologasse o desquite amigável ou fosse proferida contra a União, o Estado ou o Município (v. tb. Dec. n° 23.301, de 30/10/1931). Como se observa, o instituto do casamento e o interesse público tinham a proteção estatal também na órbita instrumental, conjugação que não mais se mantém.

Presentemente, o duplo grau destina-se, apenas, a preservar o interesse público, ampliando seu leque protetivo através da Lei n° 10.352/01 para forrar também os interesses que envolvem o Distrito Federal diante de sentença contrária aos seus objetivos, bem como as respectivas autarquias e fundações de direito público, para as quais a regra codificada já existia em lei extravagante, excluídas, portanto, as sociedades de economia mista como o Banco do Brasil S.A. e as empresas públicas como a Caixa Econômica Federal.

O “julgamento” de improcedência da execução de dívida ativa da Fazenda Pública foi substituído pelo julgamento da procedência, no todo ou em parte, dos embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública, redação que se revela mais própria e pertinente, na medida em que a execução, propriamente dita, não possui julgamento, limitando-se o juiz a ordenar o seu processamento, observadas as formalidades legais, até porque se processa no interesse e com vistas à satisfação do credor, no caso o fisco, pois a dívida ativa, regularmente inscrita, goza da presunção de certeza e de liquidez, malgrado “juris tantum”, podendo ser ilidida por prova inequívoca, na forma do art. 3° e seu parágrafo único, da Lei n° 6.830, de 22/9/80. A supressão da designação “voluntária da parte vencida” após haja ou não apelação, outrora figurante do parágrafo único do art. 475, da lei instrumental civil, hoje identificado como parágrafo 1°, configura-se acertada, pois o recurso haverá de ser sempre voluntário e expontâneo, acrescentaríamos nós e, naturalmente, oferecido por quem foi vencido ou tem interesse, no todo ou em parte, no litígio. Quem foi vencedor, in totum, obviamente, não poderá apelar, por faltar-lhe o que pleitear, isto é, a possibilidade jurídica e o interesse processual, podendo oferecer, tão somente, Embargos de
Declaração.

De apelações sob coação não se cogita, até porque restariam viciadas, em remota hipótese, suscetíveis, pois, ao não recebimento ou à anulação ulterior. Já na ausência de remessa dos autos ao tribunal, o avocar pelo seu presidente não mais se constitui em faculdade e sim em dever, cujo cumprimento, à toda evidência, pressupõe conhecimento.

O parágrafo 2° acrescentado pela novel lei dispensa o duplo grau de jurisdição sempre que a condenação, o direito controvertido ou a procedência dos embargos do devedor não exceder a 60(sessenta) salários mínimos, em sintonia com o sistema dos Juizados especiais federais, valor por demais módico, hoje na ordem de R$ 14.400,00 (quatorze mil e quatrocentos reais), o qual poderia ser triplicado, até porque o envolvimento e a repercussão financeiros de uma Procuradoria da Fazenda para cuidar de um processo, em várias instâncias, também acarreta custos e ônus, certamente, bem significativos, que não devem ser desprezados nem olvidados pelo legislador.
A designação “devedor”, no bojo do alvitrado parágrafo 2°, outrossim, é imprópria e inadequada, pois pergunta-se: – E se o julgamento dos embargos concluir pela sua procedência, declarando não haver dívida,
admitindo a compensação, reconhecendo o pagamento, a prescrição, a ausência de inscrição da dívida ou a inconstitucionalidade da cobrança ? Por isso, correto o seria identificarmos a medida como “embargos do executado”.

Já o parágrafo 3°, ao seu turno, estende a inaplicação do recurso necessário quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente, inserção que, ao nosso ver, não merece censura. Além desses casos, estão também sujeitos ao duplo grau de jurisdição a sentença que extinguir o processo sem julgamento do mérito ou julgar improcedente a ação popular ( Lei n° 4.717/675 – art. 19) e a concessiva do mandado de segurança (Lei n° 1.533/51 – art. 12, parágrafo único).

Enquanto não reexaminada pelo tribunal, a sentença de mérito sujeita ao duplo grau de jurisdição será ineficaz e não transitará em julgado. Situação diversa será a de acórdão, ainda que o tribunal detenha competência originária, pois além da legislação não lhe fazer referência, aduzindo somente a “sentença”, o acórdão parte de colegiado diferentemente da decisão singular, presumivelmente revestido, malgrado não se trate de regra absoluta, de maior judiciosidade e conformidade ao Direito. No mesmo sentido enquadram-se as causas de competência dos Juizados especiais federais, onde não se opera a remessa necessária (art. 13, Lei cit.).

Em realidade o reexame necessário instaurou-se em nosso meio não só porque o interesse público está em jogo e para evitar a prevalência de decisões ilegais, teratológicas ou manifestamente equivocadas mas, sobretudo e principalmente, para evitar que decisões de primeira instância contrárias ao interesse público transitem em julgado diante de eventual inércia, desídia, incúria ou omissão de seus procuradores. Não fosse assim e estivéssemos sempre diante de apelação quando o interesse público fosse contrariado, não haveria necessidade, à toda evidência, de contemplarmos o duplo grau de jurisdição em nosso ordenamento jurídico.
A reformatio in peius, ao seu turno, isto é, a reforma para pior, só será possível, na medida em que tenha havido recurso da parte adversa, pois o agravamento da situação do fisco não será possível simplesmente com o recurso necessário, presente o contido na súmula n° 45, do STJ, porquanto é vedada no direito pátrio.

É preciso registrar, por derradeiro, algo que não se diz mui comumente, no sentido de que não há interesse em que o Judiciário seja forte e célere. Um Judiciário forte e independente, em realidade, representa uma ameaça aos governos e às autoridades constituídas. De nada adianta o Judiciário ser operoso, cumprindo com sua parte, se os precatórios, por exemplo, não são pagos, em regra, nos largos prazos previstos. Não bastassem, pois, os prazos em dobro e em quádruplo de que desfrutam as Fazendas Públicas, a par do duplo grau de jurisdição, o cidadão, a cidadã, o aposentado, a pensionista etc., a quem o Judiciário conferiu razão, terão que penar e esperar vários anos para receber.

Tampouco as elites dominantes e o poder econômico têm interesse em que o Judiciário solucione as questões que lhe são submetidas com brevidade; quanto mais recursos houver, melhor, compelindo-se o mais fraco ao acordo aviltante e mantendo-se o réu solto por maior período, até evadir-se, cair no esquecimento ou alcançar-se a prescrição.

A solução é simples, não necessitando de reforma profunda: reduzam-se os recursos. Se a decisão final fosse dada, comumente, em dois anos, v.g., haveria maior respeito à lei, ao outro e ao próprio Judiciário. Instigando, pergunta-se: – Há necessidade de prever-se recurso especial, v.g., quando a sentença e o acórdão foram unânimes ao apreciar a questão, que não é rumorosa e de valor módico, assegurado o devido processo legal e a mais ampla defesa ao réu ? Com a palavra os doutos.

LUIZ AUGUSTO BECK DA SILVA.
Jurista.
www.beck-jur.hpg.com.br beck-jur@via-rs.net