Uma nova convenção sobre letras de câmbio, notas promissórias e cheques.
Nos idos de 7 de junho de 1930, em Genebra, na Suíça, portanto, há cerca de 70 (setenta) anos, o Brasil, juntamente com mais 23 (vinte e três) países, entre eles a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a Colômbia, a Dinamarca, a Polônia, o Equador, a Espanha, a Finlândia, a França, a República Helênica, a Hungria, a Itália, o Japão, Luxemburgo, a Noruega, a Holanda, Portugal, a Suécia, a Suíça, a Tchecoslováquia, a Turquia e a Iugoslávia, além do representante da Cidade Livre de Dantzig, na Polônia, firmaram aquela que veio a ser conhecida e consagrada, mundialmente, como a Convenção de Genebra, adotando uma Lei Uniforme para regular a emissão, a forma, o endosso, o aceite, o aval, o vencimento, o pagamento, a cobrança, a intervenção por parte de terceiros, a pluralidade de exemplares e das cópias, as alterações e a prescrição em relação à Letra de Câmbio e à Nota Promissória.
Cerca de 12 (doze) anos mais tarde, mais precisamente em 26/8/1942, o Governo brasileiro, por nota da Legação em Berna, na mesma Suíça, ao Secretário Geral da Liga das Nações, ratificou-a, aderindo à Convenção alvitrada.
Noventa (90) dias após a data do registro pela Secretaria Geral da Liga das Nações, ou seja, em 26/11/1942, a referida Convenção entraria em vigor para o Brasil.
O Congresso Nacional, todavia, veio a aprová-la somente em 1964, através do Decreto Legislativo n° 54, ao passo que sua promulgação veio a ocorrer apenas em 24/1/1966, via Decreto n° 57.663, publicado no DOU de 31/1/1966.
Ao todo, foram setenta e oito (78) artigos em seu anexo I e mais vinte e três (23) em seu anexo II.
Consideradas as peculiaridades e as diversidades regionais, a localização geográfica, a cultura de cada povo, o contexto social, a etnia, os usos, os costumes, as tradições, o direito consuetudinário, a jurisprudência etc. predominantes no território de cada Alta Parte Contratante, a Convenção admitiu que cada país apresentasse suas reservas em relação aos dispositivos que entendesse inaplicáveis em seu meio, possibilitando-lhe, assim, dispor e/ou legislar a respeito.
Em decorrência, o Brasil apresentou Reserva em relação a 13 dos seus artigos, mais precisamente ao 2°, 3°, 5°, 6°, 7°, 9°, 10, 13, 15, 16, 17, 19 e 20, do Anexo II, vigorando, assim, quanto a tais disposições, o contido no vetusto Dec. n° 2.044, de 31.12.1908, a par de regras outras contidas em nosso ordenamento jurídico, com destaque para o advento superveniente de nosso Código de Processo Civil de 1973, quanto à forma procedimental de cobrança de tais efeitos, títulos de crédito e cambiais por excelência, revestidos, em regra, de abstração, sempre que sejam objeto de transferência a terceiros, endossatários de boa fé, alheios à relação negocial fundamental e, mais recentemente, para a Lei n° 9.492, de 10/9/1997, que definiu competência e regulou os serviços concernentes ao protesto de títulos (e outros documentos de dívida), entre eles a Letra de Câmbio, ordem de pagamento, de iniciativa do sacador, que também pode intitular-se tomador ou favorecido (ou designar um terceiro) e a Nota Promissória, promessa de pagamento, que já nasce reconhecida pelo emitente ou devedor, em favor de outrem, pressupondo, assim, em princípio, maior certeza no recebimento.
Como se observa, há cerca de quatorze (14) lustros, já havia uma grande preocupação de mais de duas dezenas de países de diversos continentes, signatários da Convenção, em elaborar uma Lei Uniforme para vigorar no âmbito de seus territórios, sem prejuízo do oferecimento de eventuais reservas e disciplina própria no que tange às regras que não lhes aprouvesse, capaz de evitar dificuldades originadas pela diversidade de legislação nos vários países em que tais cártulas circulam, aumentando, por conseguinte, a segurança e a rapidez das relações do comércio internacional, até porque, na expressão de Waldírio Bulgarelli (Títulos de Crédito. São Paulo, Edit. Atlas), a apontada abstração foi instituída para garantir a segurança da circulação.
Os textos aprovados o foram em dois idiomas – o francês e o inglês – começando por aí a dificuldade em adaptar-se às suas versões, não bastasse, hoje, a enorme distância, no tempo, desde a sua edição, completamente desatualizado em relação aos novos ventos que sopram, na economia, seja em função da sua globalização, da abertura de nossas fronteiras, da integração dos povos, a par da revolução tecnológica com o surgimento da informática, da internet, da microfilmagem, da tecnologia laser (light amplification by stimulated emission of radiation), das relações comerciais virtuais, sistemas criptografados, do incremento na utilização do cartão de crédito, dos títulos escriturais, abandonando-se, cada vez mais, a cartularidade etc.
Nesse diapasão, assumem relevo erros crassos cometidos na tradução para o vernáculo, em autênticas, típicas e características “gafes legislativas”, tais como o confundir a figura do mandante com a do mandatário (v. art. 18, in fine, do anexo I), além da figura do avalista ou avalizado com a do fiador ou afiançado (v. art. 32, 1a alínea, do mesmo anexo), embaralhando os institutos do aval, de natureza cambiária, com o da fiança, de naturezas mercantil e civil, induzindo, assim, o neófito e o incauto à incompreensão, à dificuldade e ao erro.
Por outro lado, possuindo dois diplomas legais vigentes que disciplinam a mesma matéria (Dec. n° 2.044/1908 e Dec. n° 57.663/1966), face as Reservas apresentadas pelo governo brasileiro, à época, dúvidas surgem, na doutrina e na jurisprudência, vez por outra, ainda hoje, a respeito de qual norma prepondera ou incide, no particular, porquanto, em alguns casos, até a presente data, pende a promulgação de disposições que corresponderiam ao talante ou alvedrio tupiniquim, como é o caso do art. 43, da Lei Uniforme de Genebra, que vigora, na íntegra, malgrado a reserva oferecida (v. v.g., Fran Martins. Títulos de Crédito. Rio de Janeiro, Forense. Vol. I, págs. 44/58).
Acresce considerar que os institutos da pluralidade de exemplares e das cópias, em relação à Letra de Câmbio, entre outros, não vingaram em nosso meio.
E não se aduza, por desconhecimento, tratar-se a Letra de Câmbio de um título de crédito em desuso. Além de tal afirmação não corresponder à realidade, muito antes pelo contrário, suas disposições representam o carro-chefe, ou o “padrão dos títulos de crédito”, na expressão de Fran Martins, ob. cit., pág. 71.
Note-se que a duplicata e a triplicata, títulos de crédito cambiariformes, reguladas pela Lei n° 5.474, de 18/7/1968, diuturnamente utilizadas, em profusão, pelo empresariado brasileiro, têm os dispositivos da legislação sobre emissão, circulação e pagamento das letras de câmbio, no que couberem, aplicáveis a si (art. 25). O mesmo ocorre, em regra, no que pertine aos demais títulos de crédito – v., a propósito, o Dec.-Lei n° 413, de 9/1/1969 (art. 52), que cuida dos financiamentos cedulares industriais, representados pela emissão de notas e cédulas de crédito; a Lei n° 6.313, de 16/12/1975 (art. 3°), que disciplina os títulos de crédito à exportação; a Lei n° 6.840, de 3/11/1980 (art. 5°), que dispõe sobre os títulos de crédito comercial e a novel Medida Provisória n° 1925-10, de 14/10/1999 (art. 20), que trata das Cédulas de Crédito Bancário, destinadas a retratarem operações de crédito, de qualquer modalidade, em particular contratos de abertura de crédito em conta corrente etc., a fim de emprestar-lhes executividade, presente jurisprudência remansosa do STJ que culminou com a edição da súmula n° 233, de 13/12/1999, negando-lhes tal condição.
De outra parte, podemos citar três grandes áreas ou setores de nossa economia e mercado de trabalho, referência essa, esclareça-se, que não se constitui, naturalmente, em numerus clausus, em que a Letra de Câmbio é comumente utilizada, em larga escala, quais sejam a de consórcios, pelas sociedades de crédito financiamento e investimento, as denominadas financeiras; a imobiliária, pelos corretores, com vistas à cobrança da comissão que lhes é devida, concretizado o negócio entre vendedor e comprador do imóvel e, por fim, pelo meio advocatício, na contratação e cobrança de honorários, vinculando a mencionada cártula ao contrato, caso em que se torna um título causal (v. Resp. n° 173.211/SP – DJU de 6.12.1999, p. 95, 4a Turma – STJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Jr., unânime), isto é, despido de abstração.
2.No que se relaciona ao cheque, não haveria porque ser diferente, apesar de que em relação a si vige entre nós legislação mais recente representada pela Lei n° 7.357, de 2/9/1985, cujo art. 69 ainda ressalva competência ao Conselho Monetário Nacional, nos termos e nos limites da legislação específica – Lei n° 4.595, de 31/12/1964 (Lei da Reforma Bancária – arts. 2° ao 8°), recepcionada pelo STF como lei complementar, ante a falta de regulação ao art. 192, de nossa Carta Política, desde a sua promulgação em 5/10/1988, providência legislativa que, dificilmente advirá, malgrado tramitação existente no Congresso Nacional, ante o domínio e a influência exercidos pelas elites dominantes nos mercados financeiro, de capital e especulativo, não lhes convindo, v.g., à toda evidência, a limitação das taxas de juros, não obstante a impropriedade de sua contemplação em uma Constituição federal, que deveria ser imaculada, respeitada e consagrada, no tempo, e não vulnerável, nem suscetível a tantas mudanças e emendas, como grassa entre nós, conduzidas ao sabor dos interesses governamentais, tornando-a uma colcha de retalhos e desprestigiada junto à sociedade politicamente organizada, em especial junto aos homens dotados de consciência crítica e não ingênua.
Sucessivamente, firmou o Brasil a Convenção Interamericana sobre conflitos de leis em matéria de cheques, resultando na expedição do Dec. n° 1.240, de 14/9/1994.
Antes, porém, o governo brasileiro, a exemplo do que já havia feito em relação à Letra de Câmbio e à Nota Promissória, também aderiu à Convenção de Genebra para adoção de uma Lei Uniforme em matéria de Cheques, assinada, desta feita, em 19.3.1931, mas promulgada, todavia, somente em 7/1/1966, via Dec. n° 57.595, com sua publicação no DOU de 17.1.1966, presentemente não mais em vigor ante o advento da Lei retro mencionada n° 7.357/85, não havendo, assim, necessidade de denunciá-la, tal como se exige quanto à Convenção em matéria de Letra de Câmbio e Nota Promissória.
O número de cheques que transitavam pela Câmara de Compensação de Cheques do Banco do Brasil em meados de 1998 andava ao redor de 14 milhões diários, no País, circunstância que bem atesta, não obstante a larga utilização de cartões de crédito em nosso meio e a possibilidade de saques e transferência através dos meios eletrônicos, a sua marca, força, expressão e significado, em nossa economia, sobretudo após assumir contornos de promessa de pagamento e/ou de garantia na aquisição de produto ou serviço, com a proliferação dos “pós-datados”, descaracterizadores, até mesmo, de tipificação delituosa na ausência de suficiência na provisão de fundos independentemente de ter havido, ou não, antecipação na sua apresentação ao sacado (banco), em quebra ao pacto adjeto anteriormente promovido entre os contraentes da relação jurídica fundamental (negócio subjacente) – v. tb. súmula n° 246, do STF.
Não se pode perder de mira, outrossim, que durante a vigência da CPMF (v. tb. Lei n° 9.311, de 24/10/1996), admite-se apenas um endosso no cheque, circunstância que o desvirtuou como título de crédito, não obstante cambiariforme e causal, retirando-lhe uma de suas características principais, qual seja a da circulação, impedindo, em decorrência, maior mobilização e pulverização do crédito, além da multiplicidade de negócios, visualizado como fonte de pagamento, de troca e de transferência.
Nesse contexto, assume relevo, não fossem suficientes os valores sociais, os interesses difusos, coletivos, públicos e superiores da integração entre os países do Mercosul, com convergência legislativa, a par do desenvolvimento da economia do cone sul, a imperiosidade da mudança ainda que fôssemos ficar adstritos ao âmbito meramente interno. Para tanto, basta que o Brasil, ao seu turno, eis que é o único dos signatários da Convenção de Genebra, dentre os países do Mercosul, denuncie-a ao Secretário Geral da Sociedade das Nações, em Genebra, conforme lhe faculta o art. 17, do protocolo firmado, porquanto já decorridos dois anos desde a sua vigência.
Manifestada tal vontade política, através dos canais competentes, constitua-se uma Comissão formada por juristas e economistas, primordialmente, ligados aos países interessados, a exemplo da Parlamentar Conjunta ou da de Comércio do Mercosul, do Conselho do Mercado Comum e/ou do Grupo Mercado Comum, a fim de que elaborem em duas versões – Português e Espanhol – uma “nova” Convenção para a disciplina da Letra de Câmbio, da Nota Promissória e do próprio Cheque, admitido o oferecimento de Reservas, caso em que o país que a apresentasse disporia a seu respeito, na forma que lhe aprouvesse, segundo seus interesses, necessidades, realidade e peculiaridades locais, presente a competência privativa da União, em termos de Brasil, para tal missão, à luz do art. 22, II, da Constituição federal, sem olvidar de que lei complementar poderá autorizar os Estados para tanto, atribuindo-lhes e/ou delegando-lhes competência nesse sentido (art. cit., parágrafo único).;
A sede para firmatura da Convenção por parte dos plenipotenciários é questão menor a ser definida, podendo ser Brasília, Porto Alegre, Buenos Aires, Montevidéu, Assunção ou mesmo Santiago, fazendo com que se engaje definitivamente ao bloco em detrimento à Alca.
* Jurista, Parecerista, Prof. de Direito Comercial da Escola Superior da Magistratura – AJURIS, Diretor do Departamento de Direito Bancário do IARGS, Assessor Jurídico jubilado pelo Banco do Brasil.